março 03, 2004

"Niquices"

Um dos textos que aqui escrevi que obteve mais comentários e proporcionou uma interessante discussão, foi o relativo a José Hermano Saraiva. Rapidamente a discussão se afastou deste objecto e abordou muitos outros, todos eles relacionados com a problemática do saber histórico. Foi sobretudo o José quem iniciou e continuou o que bem poderia ser uma tertúlia no reaberto tripeiro Brasileira (ainda lá não fui, aceito convites). Foram lançadas inúmeras propostas de discussão, e por essa razão decidi lançar aqui o tema.
O tópico de discussão que escolhi para hoje inspirou-se directamente no último comentário do José:

"Aqui há uns tempos, dei com um jornal velho ( de 1972 ou 73) em que se escrevia sobre Aljubarrota de forma que hoje não me parece que seja corrente. Escrevia o articulista que nem sequer era especialista, que os portugueses gritavam "Por S. Jorge!" e os castelhanos " Por Santiago!" Quem é que hoje em dia se interessa por estas niquices?!"

A questão levantada pelo José pode ser traduzida, por exemplo, da seguinte forma: "O que é o facto histórico?", ainda que se levantem muitas outras questões que deixo para a discussão.

A história, já se disse muitas vezes, é a ciência do individual (não confundir facto individual com facto de um indivíduo)– se é que se pode aceitar uma ciência de tal. O geral diria respeito, nos actos humanos, à psicologia social, a certas áreas da sociologia. E como, mantendo-se o peso da tradição que condiciona o pensamento europeu desde Aristóteles, segundo a qual não há ciência a não ser do universal, se considerava que o individual não entra no conhecimento científico, não houve outro remédio senão concluir que a história ou não era uma indefinivel arte sintetizadora ou era mera técnica de documentação, resumindo, apenas, o material de observação para a síntese sociológica, a lei psicológica ou em certos autores, a interpretação filosófica. A história não seria mais do que a mera narração literária ou o conjunto de uma série de técnicas – paleografia, numismática, epigrafia, arquivística.... Tais ideias resultavam da confusão sobre o que quer dizer “ciência de factos”, não tendo em conta o que em qualquer ciência empírica há de interpretação teórica. Além disso, resultava do erro sobre o que quer dizer “ciência de factos individuais”, e, em último caso, do que significa o carácter individual dos factos históricos.
O individual histórico não está nos acontecimentos. Os acontecimentos (os próprios documentos, podemos dizer) que o positivismo considerava como factos, só se convertem numa realidade singular dentro dum conjunto e somente nele adquirem pecularidade. Não tem valor histórico, por exemplo, a armadura que Carlos V usou em Mulburg, uma armadura semelhante a tantas outras. No entanto, pode adquiri-lo e adquire efectivamente significado histórico numa conexão construída no plano da história do vestuário, com outros testemunhos que em si podem ser gerais, mas que no seu conjunto se individualizam. Tem-no, quando na história da cultura, ao observar que o Imperador, como o militar da época, se cobria com arnéis de protecção pessoal, relacionamos esse dado com outros que nos permitem chegar a uma conexão que poderíamos, por exemplo, enunciar assim: coexistência na época de Carlos V de elementos renascentistas com uma forte dose de espírito cavaleiresco.

Ou seja, o grito de ambos exércitos adquire valor se relacionado com outros elementos...